Recorte e costure-se

 

Menina, a felicidade é cheia de praça, é cheia de traça, é cheia de lata, é cheia de graça. Menina, a felicidade, é cheia de pano, é cheia de peno, é cheia de sino, é cheia de sono. Menina, a felicidade, é cheia de ano, é cheia de Eno, é cheia de hino, é cheia de ONU.

É nos dias cotidianos que se passam os anos. A cada mil lágrimas sai um milagre. Quando nada acontece há um grande milagre acontecendo que não estamos vendo. De frente àquele segundo genial que mudaria tudo de repente, percebi que a vida é todo dia.

Se calhar é assim que se aprende, respondendo. Dançar não é coisa aprendida, mas o aprender-se a cada dia. Assim é que entendo a lição, sabê-la, mas segui-la, não. Dance, dance, se não estaremos perdidos!

(Aí está todo o mal! Nas palavras! Todos temos dentro de nós um mundo de coisas; cada qual tem um mundo seu de coisas! E como podemos nos entender, senhor, se nas palavras que eu digo ponho o sentido e o valor das coisas como elas são dentro de mim; enquanto quem as ouve, inevitavelmente as assume com o sentido e com o valor que têm para si, do mundo assim como ele o tem dentro de si? Acreditamos nos entender, mas não nos entenderemos jamais).

Como um pato que sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado. A memória tem o peso da gravidade. Raízes são importantes. Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente. Preciso conduzir um tempo de te amar, te amando devagar e urgentemente. Eu queria parar no instante de nunca parar. Se eu tivesse mais alma pra dar, eu daria.

Quando uma pessoa vive plenamente, todos vivem. O entendimento do novo implica sempre a construção de uma nova razão, uma percepção aberta, viajante, pesquisadora, participante ativamente, disposta a tudo, a erros e desvios do caminho. Tenho muito o que fazer. Preparo o meu próximo erro.

(É possível também que já então meu tema de vida seja a irrazoável esperança, e que eu já tenha iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo fosse me dado por nada.)

Não me olha assim, que eu te jogo o coração na cara.

(Nada acontece, ninguém vem, ninguém vai, é terrível. Oh… Isso e aquilo, suponho, nada em particular. Sim, agora eu me lembro, ontem passamos a tarde tagarelando sobre nada em particular. Isso vem acontecendo há meio século.)

Eu não poderia acreditar… vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas… ah! Que piada. Não precisa de nada disso: o inferno são os Outros. O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, é preservá-lo, e abrir espaço. Meu corpo (meu imaginário) é um impedimento para o amor? Meu coração catoláico, tudo rejeita e quer.

As almas são árvores. De vez em quando uma folha da minha vai voando poisar nas raízes da de você. Que sirva de adubo generoso. Com as folhas da sua, lhe garanto que cresço também. A solidão, a verdadeira solidão, exige a companhia ideal.

A beleza salvará o mundo. A única maneira de suportar a existência humana é refugiar-se na literatura como numa orgia perpétua. O primeiro passo na direção da beleza é compreender o próprio limite e o escopo da imaginação, compreender o próprio ato da apreensão estética. Isso ficou bem claro?

Não há nada de novo sob o sol. Mas ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio.

*Esse texto é formado por recortes de outros autores. São eles, em ordem de aparição: Tom Zé, Millor, Alice Ruiz, Guimarães Rosa, Maria Giulia Pinheiro, Saramago, João Cabral de Mello Neto, Pina Bausch, Pirandello, Adélia Prado, Patricio Guzmán , Paolo Sorrentino e Umberto Contarello, Chico Buarque, Caetano Veloso, Clarissa Pinkola Estés, Zé Celso, Brecht, Clarisse Lispector, Sinhá, Beckett, Sartre, Ítalo Calvino, Ana C., Chico César, Mário de Andrade, Nelson Rodrigues, Fiódor Dostoiévski, Gustave Flaubert, James Joyce, Eclesiastes (Na Bíblia) e Heráclito. A imagem é de Louise Bourgeous.

Recorte e costure-se

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